Tem sido difícil imbuir-me do espírito natalício aqui nos antípodas. A família está longe, praticamente não vejo televisão nem entro em lojas… e não é Inverno. As imagens que vejo na internet de camisolas de lã e enfeites em encarnado e verde causam-me estranheza. Ainda não decorei a casa nem fiz um único presente. Uhm…
Quanto mais globalizados ficam os nossos imaginários e tradições (
Pinterest?), mais me apetece procurar aquilo que é português. Claro que alguns dos elementos que caracterizam Portugal agora, ou até mesmo há 100 anos, provavelmente não existiriam há 300… longe de mim querer cristalizar uma determinada ideia de portugalidade. Mas acho que percebem aquilo a que me refiro… afinal, o que é um Natal português?
Numa troca de emails recente com a minha amiga Gracinha, fui presenteada com a versão dela de um Natal português. Gostei tanto do texto que não resisto a partilhá-lo convosco.
Um Natal português
por Graça Almeida Borges
Um Natal português? O meu Natal é… Uma preparação cuidada e a várias mãos da árvore de Natal. As mais jeitosas ficam encarregues das luzes. A estrela nunca está verdadeiramente direita. O Natal são chocolates na árvore a aparecer e a desaparecer misteriosamente (continuamente – o meu Pai certifica-se de que há sempre chocolates na árvore), só um fiozinho dourado e um resto pequenino de papel prateado rasgado a denunciar os roubos sucessivos. É um presépio bonito, composto, elaborado, com socalcos feitos de caixas antigas do Marks & Spencer e da Loja das Meias forradas de papel de lustro verde (quando éramos miúdos íamos todos à Mata de Barão de São João buscar musgo para o presépio), com pastores e pastorinhas espalhados, algumas ovelhas (neste presépio não há cabrinhas…), o burro e a vaca, um poço, algumas casas, São José e a Virgem Maria no topo, os três Reis Magos a caminho e o Menino Jesus a chegar só mesmo à meia-noite do dia 25. São demasiados doces a chegar lá a casa – um tronco de chocolate que não se deixa tocar, uma tarte de amêndoa da viúva do Sr. Daniel, fatias douradas, sonhos, e outros tantos que, eu confesso, nunca chego a provar.
O Natal é uma confusão de gente a entrar na casa da cidade, uma canja de galinha com arroz que começa a ser feita sempre em cima da hora, pão de forno na mesa e presunto acabado de cortar, bacalhau e couves, sem dúvida!, vozes, risos e gargalhadas altas, uma confusão em que ninguém se deixa ouvir. Os miúdos a correr de um lado para o outro. São duas mesas grandes, porque já há muito que não cabemos todos na mesma. O Natal são pequenos papelinhos com os nomes a indicar o nosso lugar. O Natal é esperar pelo Filipe e pelo Miguel que, cambaleantes na sua alegria, chegam sempre tarde do seu corridinho de Natal às casas e amigos de Lagos – chegam normalmente a falar uma língua inebriada que só os dois primos entendem. O Natal é azevinho. O Natal é comer à pressa para apanhar a Missa do Galo.
O Natal é um peru delicioso, por vezes destronado por um Galo Capão, com um arroz de grelos único. A receita do arroz de grelos passou da minha Avó Mia para a minha Mãe. (Esse peru ou galo e esse arroz de grelos ficamos a comê-los nos dois ou três dias seguintes. Eu sou a única que não se queixa…) O Natal é uma discussão constante em torno dos pratos do serviço de Natal – quem fica com o comboio, quem fica com o cavalo, quem fica com o soldadinho ou os soldadinhos, com o trenó e, sobretudo, quem NÃO fica com a corneta! O Natal é uma mesa bem posta: toalha, pratos, copos e guardanapos a condizer. O Natal são várias cores, de preferência nos mesmos tons. O Natal é uma lareira sempre acesa, o cheiro de lenha a encher a sala e a fugir da chaminé. O Natal é frio na rua, calor em casa. O Natal é muito vinho!
O Natal é uma tentativa contínua de um plano perfeito para viciar o sorteio dos presentes, cada vez mais controlado, cada vez mais difícil de viciar. (Depois de três anos ou mais a calhar a mim e às minhas irmãs trocar os presentes entre as três, começaram a desconfiar…) O Natal são passeios à cidade, a tentar equilibrar o passo na calçada escorregadia, a correr atrás do cheiro a castanhas assadas na rua. O Natal é uma troca constante de “Bom Natal”, “Boas Festas”, “Feliz Natal” quando passeamos pela rua. São postais de Natal em cima da lareira. São velas grandes e encarnadas acesas durante demasiado tempo, a derreter esquecidas sobre onde não queremos. O Natal é roupa quente, uma gola alta, um gorro, luvas de lã, um cachecol bem enrolado. São presentes também. Só um para cada pessoa. Escolhido a dedo e anunciado com muita imaginação. Com muito humor também. O Natal é lembrar quem não está e quem faz falta. Ou porque foi e já não volta ou porque simplesmente não pôde estar ali. O Natal é estar à mesa e deixar as muitas histórias e recordações prolongar o almoço e o jantar. O Natal em minha casa é a cumplicidade da boa-disposição. O Natal para mim é tudo isto… Mas é também muito mais.
(texto: © Graça Almeida Borges; fotografia: © Constança Cabral)